Furiosa Aberta
O segundo trabalho da banda ímã é fruto de parcerias com as poetas e amigas Francisco Mallmann, Natasha Tinet e Julia Raiz.
“Como uma banda pode sobreviver ao isolamento? Ainda temos mais perguntas do que respostas. Melhor assim”, pensa Luciano Faccini, que, dentre outras funções, é cantor, compositor e diretor artístico da ímã. Tentando fugir da norma - máxima que guia o processo criativo da banda desde sua fundação -, a grupa apostou nos jogos de composição. “Se por um lado a pandemia forçou o mundo inteiro a reorganizar hábitos, rotinas e modos de sobrevivência, por outro, nós conseguimos reunir esforços para colocar em prática um interesse antigo de explorar processos de composição que pudessem percorrer caminhos diferentes dos tradicionais”, explica o músico.
Três poemas de poetas premiadas foram musicados. “Achamos que seria maravilhoso ter outras artistas navegando nessa experiência com a gente, e aí, muito espontaneamente, chegamos em Julia, Nat e Chico, que, antes do projeto, já tinham uma relação com a banda”, fala Day Battisti, a violoncelista da ímã. Luciano faz parte da Membrana Literária, grupa de escritoras que também abraça as três convidadas especiais do EP, e por isso outras parcerias artísticas já vinham sendo desenhadas ao longo dos anos.
Cada integrante da ímã recebeu o desafio de musicar um trecho de cada poema e posteriormente essa profusão de ideias e intuições deu origem a uma obra original e imaginativa. “Foram muitas e muitas versões diferentes, lotamos muitos drives e HDs com propostas, que foram criadas em pedacinhos de MP3 e Wav ao longo das semanas de trabalho, trazendo detalhes que iam surgindo e sendo testados, aplicados nas canções por cima daquilo que já constava nelas”, diz o percussionista Daniel D’Alessandro. “As reuniões semanais por videochamada serviam para que conversássemos sobre o que tinha sido construído e decidíssemos juntos sobre o que fazer com os arranjos.”
Nenhuma música foi ensaiada antes das gravações, no sentido convencional do termo. “Sem a presencialidade, foi como esculpir algo, junto com outras sete pessoas, cada uma em sua casa, com essencialmente aquilo que tinha à disposição para a captação de cada instrumento”, expõe Daniel. “Foi tipo uma gincana de meses e meses onde muitas vezes tudo parecia uma grande e intransponível loucura e em muitas outras vivemos o maravilhamento dessa possibilidade de composição. Foi e segue sendo um ping pong no abismo das ideias.”
Se no primeiro disco a ímã teve a oportunidade de gravar a totalidade das músicas no Gume Estúdio, de Leonardo Gumiero, com maior uniformidade na escolha de microfones e técnicas de produção musical, desta vez foi preciso recorrer ao “universo das colagens”, nas palavras de Daniel. “Gravações feitas com o celular, com gravadores diferentes, com microfones e placas de som ótimas, outras nem tanto. Tudo isso colabora para deixar o trabalho mais diversificado ainda em termos de timbres, de cores e tipos de luzes empregadas”, completa Luciano.

Faixa a faixa

No Coração do King Kong
“Primeiramente pensamos nela como uma introdução à Furiosa Aberta, que já funcionava super bem apenas com voz e violão. Tínhamos o Lorenzo Molossi na banda, naquela época, e foi ele que trouxe o breakbeat e o sample do Milton que vira em seguida um duelo de banjos.
Tudo começou com o riff do violão que o Luciano tinha feito... Numa noite embriagada e memorável, eu e ele imaginamos melodias que pudessem se encaixar nessa base em compasso de sete tempos. Era a tarefa da semana, e foi feita com um aplicativo de celular tão simplinho e divertido...
Eu cantei uma melodia estranha, que ganhou uma cara interessante com o banjo. A banda toda foi se envolvendo e monstrificando a intro, inventando os climas que vão se sucedendo. A melodia no banjo ganhou acompanhamento de flauta e de vários outros instrumentos. Tem um clima de guitarra jazz no meio de tudo, num dos respiros.
É interessante como a base em compasso de sete tempos se mantém, e vem um ritmo em quatro que passa por ela e vai embora. Em seguida, o compasso ímpar volta a se sobressair e depois fomos lapidando o final da faixa, a transição dessa loucura toda para uma canção doce como Furiosa Aberta. No fim, adoramos tanto essa intro a ponto de sentir que ela era uma outra faixa.”
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Daniel D’Alessandro

Cidade Assionara Souza
A segunda música do EP é Cidade Assionara Souza, outra parceria que nasce a partir do poema da escritora e tradutora Julia Raiz, autora de diário: a mulher e o cavalo (ContraVento, 2017), p/ vc (7Letras, 2019) e cidade menor (Primata, 2021).
“Cidade Assionara Souza é um poema que escrevi pra Nara e mandei pra ela um dia antes d’ela partir, em maio de 2018, mas infelizmente ela não conseguiu ler. Por isso e pelos conselhos sobre escrita que ela me deu, é um poema muito especial pra mim, e certo dia compartilhei com a Membrana Literária, nossa grupa de escrita.
Alguns dias depois, o Lu me mandou mensagem dizendo que tinha musicado o poema, porque gostou muito e achou que tinha tudo a ver transformar aquilo numa canção. Eu achei demais, foi um super presente, principalmente porque é uma homenagem. Semanas depois, ele começou a cantar com a ímã e acabou virando um hit da Membrana e dos eventos pré-pandemia.
Agora, estou muito feliz que vai estar no EP, junto com os poemas-canção do Chico e da Nat. Foi ótimo entrar em contato com uma área tão diferente da minha, e com tantas cabeças pensantes. O processo foi muito inclusivo, porque a ímã chamou a gente pra brincar junto.”
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Julia Raiz
a Nara não é, está doente
ontem foi dia das mães, ela fica
Imaginando uma vida diferente da sua
Agora quem escreve por ela é a Luisinha
Do primo Basílio que por sua vez é do Eça de Queiroz
Nessa rodada Luisinha não se imagina
Numa vida de amante
Quer ser uma personagem de anime que
Usa o karaokê pra cantar heavymetal
E falar mal do chefe que é um porco
(não é sujo, só é um porco)
Luisinha não é, está uma raposinha
Chamada Retsuko
Retsuko também se imagina outra
Uma cantora chamada Hatsune Miku
Hatsune Miku não é está um software
Criado a partir da voz de uma atriz
Luisinha não sabe seu nome
Muito menos Nara
O show da Hatsune Miku sempre fica lotado
Ela é um holograma de cabelo azul turquesa
O Google prefere azul piscina
Hatsune Miku o som do futuro
Não queria ser ninguém

Monika e o Futuro
Em seguida, vem Monika e o Futuro, que nasceu do poema da escritora e artista visual Natasha Tinet, que também assina a arte da capa do EP. Ela é autora de Veludo Violento (Editora Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2018, 2º lugar na categoria Poesia do Prêmio da Biblioteca Nacional), Silêncio Bergman (Primata, 2021) e Uma Alegria Difícil (Kotter, 2021).
“Escrevi Monika e o Futuro no começo de 2020 e o gravei recitando numa melodia. Mandei essa loucurinha pro Luciano Faccini, caso ele quisesse musicar (já tínhamos feito outra música) e ele levou o poema para o projeto da ímã.
Monika e o Futuro faz parte da plaquete Silêncio Bergman, que tem oito poemas inspirados na cinematografia do Bergman. É um poema que mistura referências cinematográficas como os filmes Monika e o desejo, King Kong e o futurismo do filme Blade Runner e o anseio causado pela idealização de um futuro que já passou.”
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Natasha Tinet
No coração do King Kong bate
uma mariposa seduzida pelas luzes de Manhatan
sua boneca platinada vestida em cetim não grita mamãe
sente no estômago o aperto e soluça gin-tônica
chorando lágrimas de fosfeno, reflexos de neons retrofuturistas
[ela não sabe que na verdade é uma androide com memórias implantadas
metade Hollywood, metade Discovery Channel.
Você sabia?
Que um gato quando anda
pousa a pata traseira
na memória do passo
que a pata dianteira criou?
É assim o futuro.

Furiosa Aberta
Furiosa Aberta, faixa que dá nome ao EP, é uma parceria feita a partir de um poema de Francisco Mallmann, artista e pesquisador que atua na intersecção entre poesia, dramaturgia, artes visuais, performance e crítica de arte. Ele é autor de quatro livros de poemas: Haverá festa com o que restar (Urutau, 2018, 3º lugar na categoria Poesia do Prêmio da Biblioteca Nacional, finalista do Prêmio Rio de Literatura e do Prêmio Mix Literário); língua pele áspera (7Letras, 2019); América (Urutau, 2020) e Tudo o que leva consigo um nome (Grupo Editorial Record, 2021).
“Furiosa Aberta é um poema que surgiu no manuseio de algumas palavras - e foi se tornando quase que um jogo de encaixe - a partir mesmo de ideias sobre amor e fúria. Acho que escrevi bastante mobilizado pelo movimento dos afetos - estes encontros que não precisam se dar de formas previamente nomeadas, estabelecidas, com contornos e dinâmicas facilmente reconhecíveis – ou desgastadas.
Criei querendo saber como pode ser uma dança do desejo, que não é sempre fácil de dançar. Os versos vão se dando processualmente, sem indicar nenhum tipo de finalidade, que não a própria ação de fazer.
O poema vai se dando em diferentes enunciados transitórios feitos com algumas palavras que se repetem. Talvez falar de amor, quando eu criei, fosse assim: cada formulação, ainda que feita com algum conteúdo já conhecido, apresenta uma nova movida. Como um rosto, onde o susto sempre aparece de um jeito novo. Ainda que seja o mesmo rosto. Ainda que seja o mesmo susto. Tudo o mesmo, muito outro.
Acho que tem algo de convite. Algo de mantra. Algo de lembrete. Quase como um chamado, quase como dizer: "escuta, dá pra viver isso de muitos jeitos".
Talvez a ímã tenha sentido esta abertura-convite que digo. Para mim, como alguém que trabalha com a palavra, que cria gestos em poesia, é sempre maravilhoso lembrar que a música existe. Que as palavras podem ser sons cantados. Que existem instrumentos de fazer som.
Talvez esse movimento de se fazer-refazer-fazer-refazer tenha algo de musical, algo de sonoro. Talvez as notas, as melodias, as partituras sejam também ações para que a gente possa, antes de tudo, investigá-las de dentro. Como uma pesquisa sem fim. Como a própria vida. Como quem quer saber o que as coisas podem ser – antes mesmo de tentar definir o que as coisas são, em definitivo.
Uma das maiores belezas da música, para mim, é cantar fúria entre irmãs. É cantar fúria amando profundo. Como nossas vozes podem soprar furacões sem que o grito seja necessário. Escuto e aprendo muito sobre como as intensidades não precisam ser sinônimo de grandes alturas externas.
Essa música me lembra de ser furiosa sem nunca precisar deixar de lado minha ternura. E eu creio imenso nisto. E agradeço imenso às ímãs por, agora, já não me deixarem nunca esquecer.”
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Francisco Mallmann
você me diz
assim de perto
furiosa assim
você me diz
tão perto
os nós assim
assim abertos
eu aqui
você assim
furiosa aberta
você me diz
nosso nós aqui
aberto assim
tão perto
o amor assim
furioso em mim
você aberta
o amor me diz
você assim
furiosa perto
o nós assim
você e a mim
perto aberto
o peito assim
furioso em mim
assim aberto
você me diz
peito assim
o amor assim
furioso
aberto
Ficha técnica
1 - No coração do King Kong (ímã)
2 - Cidade Assionara Souza (Julia Raiz / Luciano Faccini)
3 - Monika e o Futuro (Natasha Tinet / ímã)
4 - Furiosa Aberta (Francisco Mallmann / Luciano Faccini)
Arranjos e Concepção: ímã
Direção artística: Luciano Faccini
Produção musical: ímã + Leonardo Gumiero
Artes gráficas: Natasha Tinet
Projeto fotográfico: Tárcilo Pereira, Walter Thoms e Laís Melo
Assessoria de imprensa: Jess Carvalho
Mídias sociais: Victoria Poletto
Produção executiva: Moira Albuquerque

Day Battisti

Yasmine Matusita

Má Ribeiro

Dani Dalessandro

Roseane Santos

Luciano Faccini

Francisco Okabe

Guilherme Nunes

Leo Gumiero